CONSIDERAÇÕES SOBRE CULTURA EM HERBERT MARCUSE E WALTER BENJAMIN
Estava a procura de algo sobre Herbert
Marcuse. Tenho-o relacionado ao movimento da contra cultura dos anos 60 e 70. Buscava
algo que me alimentasse o espirito com novas informações e relativo aprofundar
sobre sua filosofia. Deparo com este encantador texto do doutorando em filosofia
Paulo Silvino Ribeiro, para o BRASIL ESCOLA. É um texto didático e ao mesmo
tempo facilitador para a compreensão do papel desse pensador sobre nossas
relações sociais neste inicio de século. PAULO.
sociologia
Herbert Marcuse e Walter Benjamin,
ambos filósofos, definiram e conceituaram a ideia de cultura em suas obras, de
forma que é possível realizar um diálogo entre eles.
O presente artigo discorre apenas
(observando a impossibilidade de esgotamento do tema) sobre alguns pontos
importantes das obras de Herbert Marcuse (1898-1979) e Walter Benjamin
(1892-1940). Tais autores conduzem suas obras a uma esfera crítica e reflexiva
quanto ao marxismo, abordando categorias e conceitos que ora dizem muito sobre
as consequências e rumos produtos da prática marxista do passado e do momento
em que escrevem (primeira metade do século XX), ora dizem muito quanto a uma
espécie de proposta ou releitura daquilo que poderia (ou não) e mereceria ser
feito. Logo, será da preocupação em sugerir e descortinar uma realidade
reificada e “contaminada” pela lógica capitalista que nascerão tais trabalhos,
num questionamento quanto às maneiras de se alcançar a efetiva tomada da
consciência de classe e, dessa forma, superar a conjuntura capitalista dada.
Num primeiro momento, peculiar a ambos os
autores, há a incômoda constatação não apenas do cerceamento dos meios e
instrumentos que poderiam levar à tomada da consciência –da “verdadeira” e
necessária consciência –, mas também à alienação produzida pela sociedade
industrial consequente de tal situação. O que chama a atenção desses teóricos
(como da Escola de Frankfurt de maneira em geral) é a maneira com que os
partidos de ideologia marxista (como na Alemanha) lidaram com a reificação da
sociedade e das relações sociais/de trabalho após terem alcançado o poder
(desembocando mais tarde em regimes totalitários, fascistas), bem como a forma
com que leram o materialismo histórico para a luta da classe proletária, para
alcance da consciência de classe.
Além disso, cultura, história, arte, literatura,
enfim, são alguns dos conceitos que permeiam as obras de Marcuse e Benjamin, e
que aqui possibilitaram uma espécie de diálogo (até onde isso é possível) entre
tais autores, uma vez que esses temas guardam entre si características comuns
no tocante à promoção do esclarecimento e tomada de consciência do indivíduo
numa sociedade industrial moderna.
Segundo Marcuse, relegados ao âmbito da cultura
estariam a literatura, as artes, a filosofia e a religião, todas de certa forma
apartadas daquilo que ele chamou de práxis social, a qual por sua vez seria uma
série de “práticas” e condutas pertinentes ao desenvolver das atividades do dia
a dia. Nas suas palavras, a cultura seria identificada como o complexo de
objetivos e valores morais, intelectuais e estéticos, considerados por uma
sociedade como meta da organização, da divisão e da direção de seu trabalho,
havendo metas culturais e meios factuais. Assim, a cultura se relacionaria a
uma dimensão superior, da autonomia e da realização humana, enquanto a práxis
social (ou o que Marcuse chama de “Civilização”) indicaria o âmbito da
necessidade, do trabalho e do comportamento socialmente necessários. Ao passo
que o conceito de progresso (progresso técnico propriamente dito) vai se
estabelecendo cada vez mais no reino das necessidades e formas de trabalho do
homem, essa relação entre “cultura superior” e práxis social vai se
transformando. Será com a complexalização das práticas capitalistas e, dessa
forma, com o aumento do processo de reificação da sociedade (que até certo
ponto respondem por este progresso) que haverá uma verdadeira incorporação e
imbricação da práxis social e da cultura, resultando negativamente nesta
última, principalmente se levar em conta seus objetivos transcendentes, aponta
Marcuse (1998).
Dessa maneira, Marcuse vai fazer uma espécie
de apologia à forma como a filosofia do passado era entendida, mais
precisamente no tocante à sua característica básica de propor a reflexão acerca
do mundo e do homem, dentro de um constante sentimento deste último de mal
estar com a sociedade, sua posição, sua ação. Com a reorientação dos moldes das
relações de sociais e trabalho, com o recrudescimento das formas capitalistas
de produção, essa mesma “cultura superior” (da reflexão, do contestamento,
construída por um espírito imbuído de um caráter antagônico a ordem) se torna
ideológica, utópica, sendo dominada pela lógica utilitarista e de
operacionalismo do pensamento vigente da sociedade industrializada. Em outras
palavras, ela se rende e perde seu caráter questionador.
Na lógica da sociedade industrial moderna, as
necessidades são redefinidas, da mesma forma que os valores que norteiam e
orientam os homens. Estes são capazes de se mobilizar para a guerra ou
despender forças em conjunto para a defesa e a manutenção do sistema,
reproduzindo alienadamente uma ordem que definiu para eles suas “verdadeiras”
necessidades. Em outras palavras, os indivíduos sob o efeito dessa submissão
aos meios de organização da vida (organização esta dada pela sujeição à cultura
ao progresso científico como ordem do dia) na sociedade industrial a tomam como
verdade, como fato dado. Será esse comportamento que produzirá um
descomprometimento ou atrofiamento ao exercício da reflexão e do questionamento,
uma vez que aquela capacidade de outrora do refreamento está
sufocada.
Ao passo que as ciências (naturais e humanas), os
valores, a “cultura e a civilização” se nivelam, destroem-se as possibilidades
de contestação e de mudança. Esse prejuízo do espírito ligado à reflexão e ao
questionamento reflete nas condições de tomada da consciência de classe, a qual
é lida como caminho à contestação da ordem estabelecida. O acesso à cultura
pela cultura não significaria necessariamente emancipação, uma vez que esta
seria reproduzida pela própria burguesia, logo imbuída de seus valores,
afirmação essa que se vê também em Benjamin. Para mudar essa situação, seria
necessária uma mudança social das necessidades vitais (que foram remodeladas
com o capitalismo). A libertação, ou retomada dessa, propõe o que Marcuse
chamou de reparação da dimensão cultural perdida com tal “progresso” que no
passado, no âmago daquela cultura superior na fala desse autor, estava
protegido da violência totalitária.
Quando Benjamin vai propor conhecer uma obra de
arte, uma produção artística, como um resgate de algo que ocorrera e vive ainda
no presente, aproxima-se de Marcuse no que diz respeito ao repúdio desse
evolucionismo e nivelamento –como das ciências –advindos da sociedade moderna,
estando no passado uma “lição” que leva à reflexão. Se para Marcuse a
manutenção do que chamou de cultura superior ou pura é interessante no tocante
à preservação de seu potencial como via antagônica à ordem dada com a sociedade
industrial, para Benjamin é essencial ter-se no conceito de história não uma
construção cujo lugar é o tempo homogêneo e retilíneo, mas sim um tempo
saturado de “agoras”, para neles se compreender o presente e agir.
Enquanto ao historicista cabe uma imagem eterna do
passado, cabe ao materialista histórico a conotação de uma experiência única a
este mesmo passado. O puro historicista (e a ele se dirige a crítica direta de
Benjamin) contenta-se em estabelecer um nexo causal entre vários momentos da
história, como uma colcha de retalhos, isto é, dentro da lógica que remete a
ideia de evolução e progresso, desconsiderando a influência ou repetição do
passado no presente. “A idéia de um progresso da humanidade na história é
inseparável da idéia de sua marcha no interior de um tempo vazio e homogêneo. A
crítica da idéia do progresso tem como pressuposto a crítica da idéia dessa
marcha”(BENJAMIN, 1985, p. 229).
Assim, é preciso valorizar as experiências passadas
que o evolucionismo desconsidera, uma vez que a história é retilínea para este.
Esse seria o caminho equivocado tomado por uma leitura historicista da cultura,
fazendo com que esta última não revele de forma transparente a mensagem de
cunho emancipador de cada obra, por ora “adormecida”. Benjamin vai chamar a
atenção à possibilidade de uma teoria materialista da cultura. Para construir
uma tradição, ele pretendeu ir além do aspecto político do marxismo, uma vez
que as questões ligadas ao domínio da cultura teriam ficado em um segundo
plano. Retomou Engels e, em contrapartida, fez uma interpretação diferente da
II Internacional, uma vez que esta admitia um evolucionismo e um progresso ao
longo da história, simpatizando-se com estes. Para Benjamin, a forma como se
estudava a história da cultura por nomes como Eduard Furchs, colecionador e historiador,
era equivocada, uma vez que o que se produzia, nas suas palavras, era uma
ciência de caráter museológico. Tornava-se a manter um inventário de obras,
mostrando sua “evolução”, tomando a história como colcha de retalhos.
Carecia-se de uma ciência que renunciasse a isso, e a ela deu o nome de
“materialismo dialético”.
Assim, para Benjamin, é possível afirmar
haver uma teoria materialista da cultura, o que pressupõe de maneira geral que
toda a ideia de evolucionismo presente nas leituras do materialismo histórico
de outrora (e do modo burguês de fazer história) caia por terra, evolucionismo
este que mais tarde fomentaria a cega crença no progresso apresentada pelo
Partido Social Democrata.
Logo, tanto para Marcuse quanto para Benjamin, a
maneira como se reproduzem o “fazer história” (para o último) e o “pensar” da
cultura (para o primeiro) dessa sociedade capitalista acabam por fomentar um
distanciamento da real tomada de consciência da realidade. Esse grau de
“desenvolvimento” a que chegou a sociedade presente (burguesa, industrial), com
o viés de uma lógica progressista e evolucionista, não apenas mudou a função
tradicional dos elementos culturais que moldavam os valores éticos e morais,
mas também camuflou as reminiscências (e respostas) do passado contidas nas
obras de arte, permitindo, consequentemente, que o poder de contestação (do
indivíduo) se enfraquecesse.
A cultura é redefinida pela ordem existente: as
palavras, os tons, as cores e as formas das obras sobreviventes permanecem as
mesmas, porém aquilo que expressam perde sua verdade, sua validade; as obras
que antes se destacavam escandalosamente da realidade existente e estavam
contra ela foram neutralizadas como clássicas; com isso já não conservam sua
alienação da sociedade alienada (MARCUSE,
1998, p.161).
Logo, a forma como é construída a cultura para
Marcuse e a maneira em que se dá a reprodução de um historicismo da cultura (de
cunho evolucionista) para Benjamin impedem a tomada da consciência de classe.
No entanto, a defesa do acesso da cultura pela
cultura não resultaria de fato na emancipação do indivíduo. Nessa lógica dos
pensamentos de Marcuse e Benjamin, a máxima do “saber é poder” acaba por ser
questionada, pois a cultura que é elaborada no presente tem um viés de
mentalidade burguesa. Seria necessário politizar a cultura, politização esta
que se dá na escolha e nas condições de reprodução e apresentação da arte. Toda
obra e produção cultural nesse cenário de forte imbricação da cultura e da
práxis social (isto é, de nivelamento dessas esferas e de extrema
racionalização da vida) é apresentada de forma destacada de sua história,
escondendo as relações que guarda com seu contexto quando de sua confecção,
isto é, não tornando claro o resgate das experiências de outrora como
aprendizado, experiências estas necessárias para a mudança social como sugerido
por Marcuse. Assim, na fala de Benjamin, como não se leva em consideração
essa politização na sua produção (da obra), não se levará em conta sua
reprodução, e dessa forma, esquece-se que no âmbito do capitalismo, a
reprodução da obra acaba por torná-la uma mercadoria.
É essa preocupação com a supressão do potencial
político da cultura que permeia tanto a obra de Benjamin quanto a de Marcuse.
Nesse sentido também se dará a crítica ao Partido Social Democrata, o qual
defende esse discurso (do acesso à cultura) como o caminho para luta. Benjamin
vai dizer que a base para a construção dessa visão da cultura vem a reboque da
concepção de história, vista de forma retilínea e homogênea, não se dando conta
da barbárie (dada pelas condições do desenvolvimento) que se fazia presente;
barbárie esta que refletiu na perda do Partido Social democrata do comando do
Estado para a implementação de um regime totalitário. “A teoria e, mais ainda,
a prática da social democracia foram determinadas por um conceito dogmático de
progresso sem qualquer vínculo com a realidade” (BENJAMIN,1985, p. 229). O
objetivo da Social democracia era o mesmo em relação à ciência, vista como
emancipadora e orientadora, e, dessa forma, deveria se tornar algo próximo ao
povo. Essa lógica sugeria que a cultura por si só desse poder ao povo,
emancipando-o. Na contramão dessa afirmação, Benjamin e Marcuse afirmam que
essa cultura construída pela “ciência burguesa”, como diria Lukács (2003), não
seria válida, mas que se deveria buscar algo no passado para se pensar o
presente buscando a promoção de uma ação. Daí a redefinição do conceito de
história ser o ponto alto da obra de Benjamin, o qual vai propor a observação
da história a contrapelo rompendo com a linearidade dos evolucionismos.
Grosso modo, Benjamin critica a ação do
Partido apontando o equívoco do conceito de história defendido, que reflete no
modo da reprodução da cultura e sua assimilação e, dessa forma, divide com
Marcuse tanto a valorização da retomada das condições (experiências) de outrora
para descortinar essa sociedade reificada, quanto o diagnostico que vê a
supressão e a “despolitização” da cultura ao passo do progresso. Assim, o
conceito de história que era fundamental para o marxismo (haja vista o
materialismo histórico) deveria ser reformulado, assim como o próprio discurso
marxista o deveria ser, pois a luta de classe estava inserida nestes conceitos:
na história e na cultura.
Paulo Silvino Ribeiro
Colaborador Brasil Escola
Bacharel em Ciências Sociais pela UNICAMP - Universidade Estadual de Campinas
Mestre em Sociologia pela UNESP - Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho"
Doutorando em Sociologia pela UNICAMP - Universidade Estadual de Campinas